7.12.07

INSTINTO SUICIDA



Instinto suicida.


Celso Athayde, da Central Única das Favelas, escreve sobre a falta de instinto de preservação que acomete os jovens que se envolvem com o crime e os faz se tornarem verdadeiros "kamikazes" modernos.


Quando fui convidado para escrever sobre esse tema (O Globo), que pode ter várias inclinações, resolvi viajar na antropologia botiquiniana de meio de madrugada e, para começar, decidi tentar entender sobre o fato de que a maioria das teorias psicológicas parte do princípio de que tudo dentro do comportamento humano, de certa forma até o instinto suicida, se justifica pelo amor à vida.

O amor à vida ou a luta pela sobrevivência, seja que nome se der, seria um traço tão marcante do nosso temperamento primordial que chegaria mesmo a ser um instinto, certo? O instinto essencial do ser humano.

" Será que mesmo esses malucos suicidas não estão também conectados à vida de alguma maneira insana que só faz sentido na cabeça deles? "

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Tudo o que se interpreta sobre nós se interpreta desse ponto em diante. Ou seja, o ser humano tende a fazer suas escolhas priorizando a manutenção da sua própria vida. Bem, parece OK pensar assim. Parece tão OK que chega a soar meio óbvio, daquelas coisas desnecessárias de serem ditas.

Nesse momento, depois da suposta democratização digital, cá estou eu, num escritório quente pra burro em Madureira, sentado diante do meu computador e também pensando assim. Chego até a pensar: será que alguém pensaria diferente disso? Será que alguém não se vê agarrado dramaticamente à vida?

Será que mesmo esses malucos suicidas não estão também conectados à vida de alguma maneira insana que só faz sentido na cabeça deles?
Estou a milímetros de produzir um texto pseudo-científico quando me lembro, entre tantas loucuras, do filme "Falcão, meninos do tráfico". Assim como os livros, quando passamos, Bill e eu, oito anos mergulhados nas vidas desses garotos e garotas por esse Brasil afora, entrevistando-os e a seus familiares, tentando entender não somente as suas relações com a criminalidade e com o tráfico, mas essencialmente a relação deles com a vida.

Nada do que vimos se difere da nossa CDD (Cidade de Deus), exceto o material bélico. E foi exatamente naquela época que percebi que a coisa não é bem assim.
" Percebi que esse sentimento de manutenção da vida é um desejo natural exclusivamente de quem está curtindo a vida. Quem está na fogueira quer que tudo acabe logo "

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Com exceção de apenas um menino, todos os que separamos para seguir no filme morreram. Só que aqueles meninos sabiam que iam morrer, eles diziam com a máxima convicção que durariam muito pouco tempo. A morte para eles era uma informação absolutamente certa em suas consciências desde o momento em que fizeram a escolha pela vida do crime ou, sei lá, quando o crime os escolheu. Lembro-me perfeitamente que nenhum daqueles meninos nunca sonhou em escapar às estatísticas e chegar aos 40 anos em algum lugar longe da CDD, por exemplo.

Foi daí que eu percebi que esse sentimento de manutenção da vida é um desejo natural exclusivamente de quem está curtindo a vida, de quem está gostando de como a vida é. Quem está na fogueira quer que tudo acabe logo. No raso, no raso, não faz mesmo muita diferença. O único desejo de quem está no inferno é tirar uma onda de motinha e tênis Nike durante seis meses ou um ano! É fumar um baseado e comer umas "minas" depois de um baile. Não dá para imaginar que esses jovens dominem assuntos como a Alca, aquecimento global ou que precisam simplesmente usar camisinha.

Aliás, esse é um assunto que carece de sentido para quem já está no inferno, concordam?
Talvez a única forma de reação seja construir mais unidades prisionais para esses jovens ou contratar mais monitores para cuidar deles, ou quem sabe fazer parcerias com ONGs sérias, ou nem tanto, para ajudar a apagar esse incêndio... Talvez ...

Bem, o dia amanheceu, acordei para a vida agora e o fato é que:

" São kamikazes de 10 anos de idade que não valorizam a vida como o ser humano vem fazendo há milênios "

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A miséria extrema criou uma raça de gente (crianças pretas, faveladas, desnutridas e desinformadas) que sente a vida dessa forma. Crianças fabricadas pela irresponsabilidade social brasileira, que são anomalias psicológicas com as quais temos que lidar. São kamikazes de 10 anos de idade que não valorizam a vida como o ser humano vem fazendo há milênios.

Estamos diante de um retrocesso histórico da raça. E o pior é que esse retrocesso não foi provocado pela queda de um meteoro gigante ou uma gigantesca geada. Foi provocado pelos nossos corações inacreditavelmente desumanos, que só passam a se interessar por esse assunto porque essa realidade desceu pro asfalto.

Mas tudo mau, a vida segue, as crianças crescem, a Cidade de Deus agoniza e o país afunda... E a vida? Bem, a vida ... segue.

Celso Athayde é produtor cultural e coordenador da Central Única das Favelas (Cufa)

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